Shakira na Colômbia: a Crônica de uma devoção anunciada

Ivan Fiuza – O show de ontem (03) foi uma saga. Passei por muita coisa para chegar à Colômbia e recomeçar minha vida (ainda na luta para recuperar o tempo que me fizeram perder do Mestrado). Mas dentre os indícios de que o roteiro da minha vida não parece dar espaço ao acaso, está esse dia e, especificamente, este momento. Crente que já sabia tudo de fanatismo – 5 vezes, 2 países diferentes – no terceiro fui desafiado pelo amor desta terra ao seu arquétipo por excelência (com o perdão do café, das rosas e das esmeraldas).

Centenas já estavam lá 5 dias antes. Cheguei às 05:00 para um show que seria às 21:00, 16 horas antes (entendedores entenderão) e encontrei exatas 931 pessoas à minha frente (meu ingresso foi numerado para controlar a entrada, garantindo sua vez de entrar de acordo com sua chegada). Senti a fúria da natureza, impiedosa nas alturas de seus quase 3000 metros em Bogotá: horas de um Sol que me curtia a pele e essa é a deixa, aqui, para que você espere um aguaceiro de botar um doido. Nunca senti tanto frio! Casaco impermeável? “Hahaha!” Capa de plástico? “Hahaha 2x!” Tive vontade de chorar, do alto de meus 34 anos, como se fosse um moleque inconsequente que juntava dinheiro o ano todo, 12 anos atrás e que tinha a cota de 20 reais por mês pra comer fora com os amigos, para o dinheiro render e ir ver a Rainha da Colômbia.

O show começou naquele pique, mas após a primeira música, comecei a ficar extremamente incomodado com a qualidade do som e um plus: o coro de milhares de colombianos que ensurdeciam a cantora, me oprimindo, me abafando, me intimidando. Eu imaginava que aqui ia ser diferente, mas não esperava por esse grau de devoção. Eu me assustei. Logo eu, o expert em ‘colombianismos’. Encharcado, incomodado e com uma dor na lombar que jamais senti (vai ‘balzaca’). Eu imaginava que aqui ia ser diferente, mas não esperava por esse grau de devoção. Eu me assustei. Logo eu, o expert em ‘colombianismos’. Encharcado, incomodado e com uma dor na lombar que jamais senti (vai ‘balzaca’).

Fiquei ao final de uma passarela, onde ela fazia diversos números, dentre os quais “Antología” e foi aí que eu me rendi e não teve para coro ensandecido, som ruim, frio e dor. Eu me entreguei. Tentei gravar no sentido oposto ao da Shakira, ela já não era meu foco, eu estava admirando a devoção, o canto ensurdecedor da Colômbia. As lágrimas vieram (coisa que nunca tinha acontecido) e ao terminar a canção, eis que a própria perdeu o rebolado, no melhor sentido, e surgiu uma Shakira que nunca vi: aos prantos de forma muito vulnerável, soluçando inclusive. Aí tive a certeza que presenciava um momento único. Fiquei ali quietinho, vendo eles se amarem e eu, em silêncio, amando os dois. Foi diferente de tudo.

A partir daí, entrei na onda. Os gritos de “mamacita”, “diosa” e “a Colômbia te ama” eram estridentes e os coros “te queremos, Shak, te queremos” (te amamos) e “Se lució, Shakira se lució” (que em meu bom ‘cearês’ contemporâneo poderia traduzir como: “a senhora é destruidora mesmo, viu?”). Em “Hips Don’t Lie”, me arrepiei quando uma onda sonora, que parecia fazer o chão tremer, varreu o Simón Bolívar na hora do “deixa eu ver a tua dança que vem da Colômbia” seguido do clássico “en Barranquilla se baila así”. Eles gritavam por sentimento de pertencimento, eles estavam se vendo no palco!

No final, em La Bicicleta, que é uma canção alegre, eu chorava copiosamente. Entendi porque eu estou aqui depois de tudo que tive que passar e como eu tava sendo retardado horas antes, me recusando a desfrutar, me vitimizando porque não era do meu jeito, como se eu já não tivesse aprendido a lição. Após o fim, pelos bosques do Simón Bolívar, no escuro, uma multidão ainda cantava aos berros suas músicas e gritava “se sobró, Shakira se sobró” (ela detonou). Quando alguém lhes disser “a Shakira nem faz tanto sucesso assim na Colômbia”, lhes recomendo ver e ouvir com seus próprios olhos e ouvidos do que a Shakira da Colômbia é capaz. Não tenho dúvidas de que ela é de fato o ser mitológico de seus antepassados que encarnou no show: Bachué, a deusa mãe da criação do mundo. Ao menos da Colômbia ela é.

***

Esta crônica é de total responsabilidade do autor e não expressa parcial nem totalmente as visões do Shakira Brasil.

Ivan Fiuza  (34) é professor de espanhol, formado em Letras pela Universidade Estadual do Ceará. Fã de Shakira há 21 anos, atualmente mora em Bogotá, onde é aluno do Mestrado em Ensino de Espanhol como Língua Estrangeira e Segunda Língua do Instituto Caro y Cuervo, da capital colombiana, órgão público do Ministério da Cultura, especializado no ensino, pesquisa e preservação do patrimônio idiomático da Colômbia.

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