Josimar Rosa – O Super Bowl 2020 se aproxima e traz como estrelas este ano os ícones latinos Shakira e Jennifer Lopez dividindo os holofotes. A ideia, em tempos trumpistas, é fazer um show que valorize minorias repetidamente atacadas tanto pelo discurso pessoal quando pelas políticas públicas adotadas pelo presidente norte-americano. Será que esta foi, porém, uma decisão acertada?
A mídia tem como costume criar animosidades e disputas entre celebridades, especialmente entre duas mulheres – e certamente os fandoms inflamados das duas, mesmo que de maneira geral formados por um público mais velho, têm seu papel nisso – de modo que uma discussão de ‘quem é melhor?’ ou ‘pena que ela vai ter que dividir o tempo do seu show’ era não apenas esperada, mas quase inevitável
E neste aspecto, infelizmente, Shakira perde de lavada para J-Lo. O nome e a imagem de Jennifer Lopez como figura pública são consideravelmente mais fortes do que a de Shakira nos Estados Unidos. Dividindo seu tempo e seus esforços entre a música e o cinema, J-Lo conseguiu seu primeiro #1 em terras americanas já com seu trabalho de estreia, em 1999. Desde então, ela alcançou o top 10 da Billboard com 9 faixas. Paralelamente, ela manteve também sua carreira de atriz, e embora o corpo de seu trabalho seja composto de maneira geral de comédias românticas mornas e conte algumas bombas como ‘A Cela’ e ‘Contato de Risco’, ela ocasionalmente estrelou trabalhos que apesar de não agradarem os críticos, conseguiram bons desempenhos com o público, como ‘Anaconda’ e ‘Encontro de Amor’ até chegar ao sucesso de público e crítica recente com ‘As Golpistas’. A vida pessoal de J-Lo também se tornou objeto da atenção da mídia, especialmente pela grande cobertura de seu relacionamento com o ator Ben Aflleck.
Enquanto isso, o apelo de Shakira nos Estados Unidos é bem mais modesto. Ela possui apenas 4 entradas no Top 10 da parada principal da Billboard e apenas uma delas é um #1. Além disso, seu último projeto notável no país é provavelmente sua participação em duas temporadas do reality ‘ The Voice’, que terminou em 2014.
Estes números frios, porém, se tornam muito mais favoráveis para a colombiana quando analisados mais a fundo. O total estimado de vendas de Jennifer Lopez, incluindo álbuns e downloads (em um processo em que um determinado número de downloads equivale à compra de um álbum) gira em torno de 42 milhões de cópias, enquanto que os números de Shakira estão na casa dos 80 milhões de unidades vendidas, de acordo com a Sound Nielsen Scan e com levantamentos recentes da plataforma Chartmasters. Estes dados se tornam ainda mais claros quando é levada em conta a performance das duas no Spotify, o serviço de streaming mais popular do planeta. De acordo com informações divulgadas pela própria plataforma em dezembro de 2019, os streamings acumulados de J-Lo até então totalizavam cerca de 2 bilhões (2 296 605 235), colocando-a na posição #235 de uma listagem que ranqueava todos os artistas com mais de 2 bilhões. Shakira, por sua vez, surgia na posição #67, próximo dos 6 bilhões de streamings acumulados (5 894 755 837), uma diferença considerável.
Shakira também leva vantagem quando o assunto é o Youtube: a colombiana possui 5 vídeos com mais de 1 bilhão de visualizações (dois destes, ‘Chantaje’ e ‘Waka Waka’, possuem mais dois bilhões). J-Lo, por sua vez, conta apenas com um, para ‘On The Floor’. Quando se trata de visualizações totais, Shakira possui quase 20 bilhões, incluindo suas participações em trabalhos de outros artistas (19,877,753,296) enquanto Jennifer possui cerca de metade disso, com quase 10 bilhões (9,713,436,63)
Analisando a opinião da indústria, Shakira ainda mantem sua vantagem. No agregador de críticas Metacritic, que calcula uma média a partir das notas dadas por críticos de diversos veículos, Shakira consegue manter uma classificação verde (acima de 6.0) para todos os seus trabalhos. Sua nota mais baixa é 6.9, por ‘Shakira.’, e a mais alta é 8.9 por ‘Sale El Sol’. Jennifer, por sua vez, acumula a nota máxima de 5.2 em quatro álbuns, conseguindo um desempenho melhor apenas na coletânea ‘Dance Again…The Hits’.
O desempenho da crítica parece se repetir também nos Grammys. Shakira possui um total de 3 Grammys e 12 Grammys Latinos, somando-se a estes outras 3 indicações no primeiro e 14 no segundo. Lopez, em contrapartida possui apenas duas indicações em cada uma das premiações, a mais recente sendo em 2001, por ‘Let’s Get Loud’.
Mas estes números parecem se refletir de maneira definitiva no histórico de turnês das duas artistas. Jennifer Lopez não é primordialmente uma artista de palco: ela até hoje só fez duas turnês solo, uma em 2012, a Dance Again World Tour, e outra menor em 2019, a It’s My Party Tour. A maior delas é a primeira, que contou com 54 shows, o mesmo número de apresentações da El Dorado World Tour, que por sua vez figura como a menor turnê feita por Shakira depois do crossover para a língua inglesa.
Mas se analisando todos estes dados a carreira de Shakira é visivelmente maior do que a de J-Lo, por que ainda assim ela é tratada como menor pela mídia norte-americana? Na coletiva concedida pelas duas esta semana, Jennifer recebeu a grande maioria das perguntas e a própria NFL a escolheu para estrelar um dos comerciais promocionais do evento, enquanto apenas uma música de Shakira foi usada em outro.
Os motivos para este tratamento diferenciado são muitos e alguns deles são mais complexos do que parecem, mas vamos tentar abordá-los neste post. Primeiro, há uma importante diferença no tratamento que as duas dão à própria carreira e este ponto é central. Desde que conheceu Gerard Piqué, Shakira vem propositalmente observando o encolhimento da própria carreira, reduzindo suas aparições públicas e trabalhando muito pouco na divulgação de seus trabalhos mais recentes. Na verdade, o simples fato de ela ter aceitado participar do show do intervalo do Super Bowl é em si uma surpresa, já que ela claramente tem evitado compromissos que a afastem de Gerard e de Barcelona nos últimos anos. Lopez, por outro lado, trabalha incessantemente mesmo sem uma carreira musical tão sólida quanto a da colombiana. Ao longo dos últimos meses ela trabalhou numa intensa campanha durante a temporada de prêmios na esperança de angariar para si mesma e para seu mais recente filme, ‘As Golpistas’, indicações ao Oscar, fazendo aparições quase diárias em eventos diversos. Além disso, ela lutou para recuperar sua carreira musical depois de diversos projetos malsucedidos até conseguir o hit ‘On The Floor’ e se manteve na mídia participando de outros trabalhos, como o programa American Idol.
Mas se a quantidade de esforço que as duas colocam em suas carreiras é bem diferente, este não é ainda o fator mais importante que orienta o modo com as duas são tratadas pela mídia norte-americana – e até mesmo pelo público em geral – e esta questão pouco tem a ver com as escolhas pessoais de cada uma: apesar de aqui as duas estarem colocadas num patamar de paridade, Shakira e J-Lo pouco têm em comum, desde suas carreiras até suas origens. Shakira nasceu e cresceu na Colômbia, um dos países mais pobres e violentos de toda a América latina, e construiu para si mesma uma carreira mais ou menos estruturada antes de fazer a escolha consciente de aprender inglês e atacar os Estados Unidos em um trabalho planejado que desviaria sua carreira completamente do curso. Jennifer Lopez, por outro lado, é americana, nascida em Nova Iorque, e por mais que pertença a uma minoria, contou com as vantagens de crescer na chamada “terra das oportunidades”.
Além disso, há de se levar em conta que não foi até mais tarde em sua carreira que J-Lo optaria por usar sua latinidade com representação de sua figura pública, optando, ao invés disso, por navegar pela urban music e, após o desaparecimento desta, pelo dance music – na verdade, mesmo hoje seu material em espanhol representa uma fatia muito pequena de seu catálogo relevante. Shakira, por outro lado, embora os detratores que a acusam de ter se “americanizado” para atingir o estrelato global, ( uma acusação que não é completamente infundada) jamais negou sua latinidade – e caso tivesse, jamais teria lançado, um single em espanhol em parceria com Alejandro Sanz e, mais do que isso, o tornado um sucesso global em tempos em que a música latina nem sonhava com a popularidade que a década de 2010 traria. De qualquer maneira, isto não significa que Jennifer não seja latina, mas a contribuição de Shakira para a comunidade latina nos Estados Unidos e no mundo é incomparavelmente maior.
Esta é a grande diferença entre as duas: Jennifer Lopez representa todos os imigrantes latinos nos Estados Unidos que fizeram uma vida para si, sem dúvidas, mas é acima de tudo americana, uma artista local cuja carreira se consolidou na época em que os Estados Unidos monopolizavam a cena pop e que, por isso, acabou alçada à fama global. Shakira, por outro lado é fruto direto da América latina, usando sua voz e imagem para propagar o que esta região possui de melhor – mas também de pior – e por isso apela diretamente para o público latino espalhado por todo o mundo, um feito representado, quase 20 anos depois de seu arroubo internacional, no fato de ela ainda encher arenas seja na Holanda ou nos Estados Unidos, mas, acima de tudo, por ainda lotar estádios em toda a América latina.
*** As opiniões expressas nesta coluna são de inteira responsabilidade do autor e não expressam parcial ou totalmente a visão do Shakira Brasil