Levi Tavares – Defitinivamente os gêneros urbanos da América Latina, como o reggaeton e o trap, entraram de vez no mainstream da música pop global. No meio musical, os especialistas têm chamado esse fenômeno de Nova Explosão Latina, similar àquela que aconteceu na final da década de 90, com figuras como Gloria Estefan, Ricky Martin e a própria Shakira. Naquela época, esses e alguns poucos outros artistas cruzaram as fronteiras e se aventuraram no mercado de música anglo e viram seus nomes ganharem grande fama global. Hoje, esse fenômeno é um pouco diferente, com os artistas latinos repercutindo mesmo com seu catálogo em espanhol. Maluma lota arenas dos EUA à Romênia, J Balvin e Ozuna tomaram as plataformas de streaming de assalto e deixaram comendo poeira diversos artistas anglo, Bad Bunny colocou um disco completamente em espanhol no Top 5 da parada de álbuns mais importante dos EUA, com vendas equivalentes superiores a 1 milhão de cópias com poucos meses de lançamento. Apesar de diferentes entre si, esses cantores têm algo em comum: cantam reggaeton e seus genêros associados. Shakira, com uma carreira consolidade de mais de duas décadas viu no movimento uma oportunidade e se aventurou a gravar uma série de temas explorando esses ritmos. O resultado? Bilhões de streaming, uma turnê mundial bem-sucedida e seu nome voando alto no mundo todo mais uma vez, mesmo quando muitos de seus pares estacionaram no tempo.
Mas nem tudo foram flores. O reggaeton é um gênero que nasceu às margens da cultura pop de massa. Com origem nas periferias do Panamá e de Porto Rico, o ritmo sofreu anos a fio com o preconceito da indústria até entrar de vez no mapa da música latina com o hit La Gasolina, de Daddy Yankee, de 2004. Esse preconceito ainda deixa marcas até hoje, mesmo com a popularização do gênero, e muitos fãs de Shakira a criticaram por gravar diversas canções explorando sua sonoridade. Em foruns, páginas e grupos nas redes sociais, ainda é comum observar diversos fãs, principalmente os de longa data, reclamando da sonoridade e das letras dos trabalhos mais recentes da colombiana. E isso não esbarra apenas em uma questão de gosto pessoal. Mas por que Shakira resolveu surfar na onda do momento e causar esse “dissabor” a uma parcela restrita de seus fãs?
Não, Shakira não é uma cantora de reggaeton. Ao gravar o disco El Dorado (2017), predominantemente formado por canções de ritmos urbanos e os singles que o sucederam, como Clandestino (2018), Tutu Remix (2019) e Me Gusta (2020), que são marcados pelo uso do dembow na melodia, a estrela latina foi acusada por alguns de seus detratores de se apropriar de um movimento que não é dela para se manter em evidência no mercado. E não faltaram críticas. Mas a realidade não é bem assim. Nessa história entra em cena a sua gravadora e um dos seus departamentos mais importantes: o A&R.
O A&R ou Artistas e Repertório é um setor dentro de uma companhia discográfica responsável pela pesquisa de talentos e desenvolvimento artístico de seus músicos. Segundo a UBC (União Brasileira de Compositores) o “célebre A&R funciona como uma confortável ponte entre artistas, ajudando-os a fazer networking. Com amplo conhecimento do mercado e os radares sempre ligados, o profissional de A&R detecta novidades e ainda consegue aproximá-las de outras novidades, promovendo parcerias. Também atua como “babá” de alguns e tradutor da linguagem “artística” para os frios homens de negócios das gravadoras. É a voz do artista incompreendido nos corredores da burocracia da indústria”. Traduzindo para uma linguagem mais acessível, o papel do A&R é buscar tendências de mercado e incorporá-la ao trabalho de seus artistas, visando um ganho de carreira. Todo artista quer ter uma grande audiência que ouça sua música e muitas vezes isso esbarra nas tendências de consumo do mercado. Não faz sentido um artista pop de massa lançar um sertanejo se o seu público não ouvir sertanejo.
Shakira tem uma comunicação aberta e fluida com seu pessoal de A&R e no seu último trabalho discográfico o responsável por essa área foi Afo Verde, que também é CEO da Sony Music Latin. Assim, gravar reggaeton não foi apenas uma decisão pessoal da intérprete de Chantaje. O A&R teve papel vital no direcionamento artístico do seu último álbum. Mas se engana quem pensa que se trata de oportunismo barato ou apenas surfar na onda. A decisão de incorporar o reggaeton é resultado de extensa e ostensiva pesquisa de mercado, adequação de público e identidade do artista.
Obviamente pesou e muito o fato do ritmo estar em voga na audiência global e migrar para o mainstream nos últimos anos. Mas é preciso manter a identidade do artista e isso Shakira nunca perdeu, mesmo com El Dorado marcado fortemente pelo reggaeton, trap e bachata. A colombiana não pode ser acusada de se apropriar do gênero por que sua carreira sempre foi marcada pela fusão de diferentes ritmos do mundo. É sua assinatura pessoal. E a própria Shakira já havia flertado com o reggaeton há mais de uma década, quando o gênero nem sonhava em ganhar a visibilidade que tem hoje. Em 2005, ela gravou La Tortura, que misturava pop, flamenco e reggaeton e ganhou as rádios do mundo todo. A música foi a quinta mais vendida do mundo naquele ano, segundo a United World Charts e a IFPI, superando os sucessos de Madonna, Black Eyed Peas, Akon, JLo e Rihanna. Vale ressaltar que foi a única música em espanhol a entrar no ranking das 50 mais vendidas. Trazer o reggaeton para uma abordagem mais pop ajudou a desmistificar o ritmo e foi uma singela contribuição da colombiana para o mesmo. Então, voltar a essa sonoridade anos depois é um caminho natural, quando as pessoas, principalmente os mais jovens estão vidrados no ritmo.
Coube a Afo Verde fazer a ponte entre Shakira e produtores do movimento, bem como colocá-la em contato com nomes como Maluma, Nicky Jam, Prince Royce e Anuel AA. E a barranquillera foi além, como sempre fez em sua carreira. É comum que artistas apenas emprestem sua voz à produções já prontas recebidas pela equipe de A&R. Shakira sempre gostou de trabalhar com suas próprias coisas e imprimiu seu selo pessoal às suas canções ‘reggaetoneiras’ que estouraram nas plataformas de streaming. Não há absolutamente nada parecido no mercado com “Chantaje” ou “Me Enamoré”, por exemplo, ainda que uma das críticas mais frequentes ao gênero seja justamente que a maioria de suas batidas são iguais. Elas são músicas que carregam no seu cerne a identidade de Shakira, mesmo que liricamente menos pretenciosas que suas baladas dos anos 90. Todas as suas canções do ritmo são assinadas por ela e contam com a sua produção.
A relação de Shakira com o reggaeton não é de oportunismo, mas de simbiose. Na biologia, simbiose se refere a uma relação de longo prazo entre duas espécies distintas em que ambas saem ganhando. E é assim com Shakira e os gêneros urbanos da América Latina. O reggaeton ajudou a colombiana a ganhar um público ainda maior e mais jovem, em contrapartida a cantora ajudou a internacionalizar o ritmo para diversos outros mercados e catapultou a globalização de artistas como Maluma, por exemplo.
Ao apostar no reggaeton, Shakira não se vendeu a uma tendência de mercado. Antes de tudo, ela otimizou sua inteligência artística e mais uma vez fez jus ao título de camaleão transcultural dado pela revista Rolling Stone, em 2018. Sua evolução musical é mais que um instinto de sobrevivência à seleção natural na indústria fonográfica. É seu apelo natural, uma ode às suas raízes multiculturais. Uma virtude que a mantém anos a fio no topo da música latina, o gênero que mais cresce em consumo no mundo há três anos seguidos.