A Shakira de Gabriel García Márquez

Ela parece mesmo ter saído de um dos livros do realismo mágico do Nobel de Literatura, Gabriel García Márquez. Shakira carrega consigo um misticismo quase folclórico que povoa o imaginário de muita gente. Furacão latino, Q.I de gênio, filantropa, empresária e artista bem sucedida, ela reúne uma série de qualidades que a colocam em um posto de quase super heroína. Hoje, a super girl colombiana completa seu 42° aniversário, e sua trajetória é tão incrivelmente peculiar, que ninguém duvidaria que ela tivesse nascido em Macondo, a mítica cidade fictícia de “Cem Anos de Solidão”, a obra mais aclamada do seu saudoso compatriota colombiano.

Ainda que Shakira não seja uma personagem de uma obra literária, o grande García Márquez escreveu sobre ela quando ainda se dedicava ao ofício do jornalismo. Era o ano de 1999 e a colombiana colhia os louros de um dos seus trabalhos mais icônicos: o álbum “Donde Están Los Ladrones?”. O então escritor e jornalista escreveu algumas páginas sobre a artista, publicadas na edição de junho daquele ano da Revista Câmbio. Quem era aquela Shakira de Gabriel García Márquez? Em comemoração ao aniversário da cantora, o SBR relembra o texto original do escritor, reproduzido pelo diário La Tercera.

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“Shakira voou de Buenos Aires a Miami na segunda-feira, 1° de fevereiro, perseguida por um jornalista que queria lhe fazer uma única pergunta por telefone para um programa de rádio. Por motivos diversos, ainda que naturais pela profissão de ambos, não pôde alcançá-la nos 27 dias seguintes, até que a perdeu de vista definitivamente na Espanha no dia 1° de março. O único que restou ao jornalista foi o argumento e o título da reportagem: “O que está fazendo Shakira quando ninguém a encontra?”. Shakira, morrendo de rir, explica: “estou vivendo”.

Ela havia chegado a Buenos Aires na tarde de 1° de fevereiro, e trabalhou na terça-feira até mais de meia-noite, sem tempo para celebrar aquele dia seus 22 anos. Na quarta-feira voltou para Miami, onde fez uma longa sessão de fotos para publicidade e gravou várias horas para a versão em inglês do seu último disco. Na sexta-feira, continuou a gravação desde as duas horas da tarde até o amanhecer de sábado, dormiu três horas e seguiu gravando até às três da tarde. Essa noite dormiu umas poucas horas e no domingo cedo voou até Lima. Ali gravou um programa na segunda, ao meio-dia, fez uma apresentação ao vivo, participou as 16h de um programa comercial e esteve até de madrugada em uma festa de promoção. No dia seguinte, 9 de fevereiro, concedeu 11 entrevistas de meia hora cada uma para rádio, televisão e imprensa, desde as 10h da manhã até as 17h, com uma pausa de uma hora para almoçar. Deveria chegar com urgência à Miami, mas teve que improvisar de última hora uma escala em Bogotá para uma visita de consolo aos afetados pelo terremoto de Armênia (cidade colombiana). Essa noite pegou o último voo para Miami, onde ensaiou quatro dias para compromissos na Espanha e em Paris. Também arrumou tempo para trabalhar com a cantora Gloria Estefan, na tradução inglesa de seus discos, desde o almoço de sábado até às 04:30 da madrugada do domingo. Voltou para casa ainda com as primeiras luzes do dia, tomou café com pão e dormiu vestida. Uma hora e meia depois a despertaram para uma série de entrevistas por rádio, que já tinha agendadas. Na terça-feira, 16, já na Costa Rica, fez uma apresentação ao vivo. Na quinta,18, viajou à Miami e à Caracas, e ali participou do programa Sábado Sensacional. Apenas dormiu, pois no dia 21 teve que voar da Venezuela até Los Angeles para assistir a entrega dos Prêmios Grammy, com a esperança de ser uma das escolhidas, mas os americanos varreram os grandes prêmios. Ela não desanimou: no dia 25 saltou para a Espanha, onde a esperavam para trabalhar nos dias 27 e 28 de fevereiro. Em primeiro de março, quando por fim pôde dormir uma noite completa em um hotel de Madrid, já havia voado tanto como uma aeromoça: mais de 40 mil quilômetros em um mês.

Os compromissos que Shakira faz em terra firme não são menos traumáticos. Entre músicos, iluminadores, assistentes de palco, engenheiros de som, a equipe que viaja com ela é um esquadrão de combate. E ela se ocupa de tudo pessoalmente. Não sabe ler partituras, mas nos ensaios está inteirada de cada instrumento, com um senso crítico severo e um ouvido privilegiado, que lhe permite interromper um ensaio para coordenar a nota exata com seus músicos. Não só colabora com eles no palco, mas também se preocupa com a sorte pessoal de cada um. Pouquíssimas vezes deixa transparecer o cansaço, mas não se engane. Em uma série de 40 shows que deu na Argentina não deu uma mínima mostra de fadiga, mas nos últimos alguém a esperava nos bastidores para levá-la carregada até o carro. Em diversas ocasiões teve taquicardia, inflamação no cólon e alergias cutâneas.

Essa situação se agravou com os árduos preparativos da versão inglesa de “Donde Estan Los Ladrones?” para os EUA, com a afortunada colaboração de Emílio Estefan e sua esposa, Gloria, que são os atuais produtores dos seus discos. É uma das pressões mais fortes que Shakira já sofreu na vida. Fala um inglês de uso diário, mas teve que se submeter a práticas esgotadoras para diminuir o sotaque, e está tão obsessiva que às vezes segue falando, enquanto dorme. Às vésperas de sua estreia, teve uma crise de febre durante toda a noite e não conseguiu dormir mais que uma hora. “Foi um dos momentos mais extenuantes da minha vida”, disse. “Chorei quase a noite toda, achando que não seria capaz”.

Do quê sente falta? Shakira parece ter se esquecido muito cedo que essa vertigem indomável nasceu com ela, e, se Deus quiser, vai acompanhá-la até a mais terna velhice. É a filha única de um conhecido joalheiro de Barranquilla, Dom William Mebarak, com sua esposa, dona Nydia Ripoll, uma família de ascendência árabe, tutelada pelos anjos das artes e das letras. A precocidade descomunal de Shakira, seu gênio criativo, sua perseverança e uma cidade natal propensa à invenção artística só poderiam ser as sementes de um destino tão peculiar. Seus primeiros anos parecem saltos de décadas. Seus cronistas asseguram que com apenas 17 meses de vida já recitava o abecedário, aos três cantava os números, aos quatro dançou a dança do ventre, sem precisar de professor, em um escola de monjas de Barranquilla, onde um funcionário sibarita dos anos 30 quis erguer um monumento consagrado ao culto de Shirley Temple. Aos sete anos, Shakira havia composto sua primeira canção. Entre os oito e dez anos, escreveu seus primeiros versos, e suas primeiras canções com letra e música originais. Na mesma época assinou seu primeiro contrato para entreter os trabalhadores das minas de carvão El Cerrejón, em Alta Guajira. Ainda não havia começado o colegial quando uma casa discográfico gravou seu primeiro disco. “Sempre estive muito familiarizada com a minha capacidade de criar, recitar poemas de amor, comecei escrevendo contos e tirava notas muito boas, exceto em Matemática”, disse ela. No entanto, não gostava quando os amigos de seus pais a obrigavam a cantar em suas visitas. “Prefiro uma multidão de 30 mil pessoas que cinco gatos pingados me escutando cantar com o violão”, confessou. Com seu rosto de menina perfeita e sua falsa fragilidade, teve sempre a absoluta certeza de que iria ser um personagem público de ressonância mundial. Não sabia em qual arte ou em que parte, mas não tinha uma sombra de dúvida, como se estivesse condenada ao fatalismo de uma profecia.

Hoje o sonho está mais que cumprido. A música de Shakira tem uma marca pessoal que não encontra pares. Ninguém canta nem dança como ela, em nenhuma idade, com uma sensualidade inocente, que parece ter sido inventada por ela.

Ela disse, facilmente: “Se não canto, eu morro”. Mas com Shakira o certo é: se não canta, não vive. A única coisa que lhe devolve a paz de espírito é a solidão em meio às multidões. Uma vez no palco não tem mais o temor cênico, ocorre justamente o contrário: o medo de não estar ali. “Me sinto como um leão na selva”, disse ela. É um desses poucos lugares onde tem a oportunidade real de mostrar quem é, quem foi e a única que, sem dúvida, será até a morte. É o caso exemplar de uma força telúrica a serviço de uma magia sutil. A maioria dos cantores costuma colocar as luzes de frente para não ter que enfrentar o fantasma das multidões. Shakira escolheu o contrário. Ela instruiu seus técnicos para que não instalem as luzes fortes contra seu rosto, e sim que elas mirassem no público, para que ela possa vê-lo e vivê-lo enquanto canta. “A comunicação é total”, diz ela. A multidão anônima e imprescindível não só lhe revela uma cumplicidade do coração que a atriz vai moldando à medida que atua segundo a palpitação de sua intuição. “Eu gosto de ver os olhos das pessoas quando canto para elas”. Alguns rostos que nunca viu os descobre entre o público e se lembra deles para sempre como se fossem velhos amigos. Uma vez, de improviso, reconheceu alguém que já havia morrido há anos. E mais: se sentiu reconhecida desde outra vida. “Cantei toda a noite para ele”, disse. São milagres secretos que fazem a glória – e às vezes o desastre – de grandes artistas.

O fenômeno mais cativante na vida de Shakira é a contaminação massiva das multidões infantis. Quando apareceu Pies Descalzos, os publicitários decidiram promovê-lo nos intervalos dos concertos populares do Caribe. Tiveram que mudar de ideia, porque o público juvenil se jogava na pista para dançar e cantar com Shakira e não queria saber de mais nada para a noite. Hoje é um fenômeno digno de uma cátedra magistral. As escolas primárias de qualquer nível social se transformaram em doações massivas de Shakiras, vestidas, que cantavam e falavam como ela. Mais curioso ainda: a febre mais alta está concentrada entre as meninas de seis anos. As gravações pirata de Shakira são moeda corrente nas transações do recreio e se vendem duas por cinco nas portas das escolas. Os adornos dos seus cabelos, seus colares e brincos se repente se esgotam assim que lançam, e nos mercados se vendem as suas anilinas no atacado para mudar a cor das tranças de acordo com a moda do dia. A heroína da escola é a primeira que aparece na sala com o álbum da cantora. Os grupos de estudo mais concorridos se convocam em casas particulares e depois de um passeio rápido pela tarefa, começa o pandemônio. Os aniversários são festas de Shakiras, em que se toca e se dança Shakira. Nas mais puras – e não são poucas – não há homens convidados.

É difícil ser o que Shakira é hoje em sua carreira, não só por sua genialidade e seu juízo, mas também pelo milagre de uma maturidade inconcebível na sua idade. Dá trabalho entender semelhante poder de criação compatível com suas tranças negras de ontem, as vermelhas de hoje, as verdes de amanhã. O próximo ano será seu: está previsto que entre com seus álbuns e ao vivo nos vastos mercados da Europa, Estados Unidos, Ásia e África, onde milhões de fãs aguardam sua música em muitas línguas. Ela tem mais prêmios, troféus e reconhecimentos que muitas estrelas veteranas. Se nota que ela é como quis ser: inteligente, insegura, recatada, gulosa, evasiva, intensa. Barranquilheira de osso colorado, do mundo inteiro, e das nuvens e do seu Olimpo, anseia pelo pão de lisa e coque de yuca, e uma casa de tetos muito altos de frente ao mar, que ela não pôde comprar, com dois cavalos e muita tranquilidade. Adora os livros, os compra, os acaricia, mas não tem o tempo que gostaria de ter para lê-los. Sente falta dos amigos que ficam nas despedidas apressadas dos aeroportos e sabe que não será fácil voltar a vê-los.

Sobre o dinheiro que ganhou, ela diz: “Tenho menos do que dizem e mais do que eu digo”. Seu lugar favorito para ouvir música é trancada dentro do carro, a todo volume, sem incomodar a ninguém. “É o lugar ideal para falar com Deus, falar comigo mesma, tratar de entender”. Confessa que odeia a televisão. Diz que sua maior contradição é acreditar na vida e ainda assim sentir o temor insuportável da morte, da perda dos sentidos.

Houve épocas em que concedeu até 40 entrevistas diárias sem se repetir. Tem ideias próprias sobre a arte, a vida terrena e a eterna, a existência de Deus, o amor e a morte. No entanto, seus entrevistadores e publicistas ocasionais se empenharam tanto para que as explicasse, que se transformou em uma especialista em respostas evasivas, mas úteis para disfarçar do que para revelar. Abomina toda ideia relacionada à fragilidade de sua fama e exaspera as versões de que pode perder a voz por seus supostos abusos. “Em plena luz do dia não quero pensar no acaso”, diz ela. De qualquer maneira, os especialistas o vêem como um risco improvável, pois sua voz tem uma colocação natural, capaz de sobreviver a seus excessos. Já teve que cantar esgotada de febre, perdeu a consciência por cansaço, mas nunca sofreu uma mínima alteração na voz.

“A pior frustração de um cantor – diz, com sua impaciência final de entrevistada – é ter escolhido a carreira de fazer música e não fazer mais música todos os dias por estar fazendo entrevistas”. Seu tema mais escorregadio é o amor. Ela o exalta, o idealiza, e é a alma e a razão de suas canções, mas o ilude com humor em suas conversas pessoais. “A verdade – diz ela, as gargalhadas – é que tenho mais medo de casamento do que da morte”. Aceita de bom grado ter tido quatro namorados públicos, e pelo menos três escondidos. Chama a atenção que parece ter havido alguns de sua mesma idade, mas nenhum a altura de sua maturidade. Em contrapartida, o cantor porto-riquenho Oswaldo Rios, o mais velho de todos, parece ter sido o menos maduro. Shakira fala deles com afeto, mas sem dor, e parece se lembrar deles como a seis fantasmas efêmeros, que um após o outro foram ficando pendurados no guarda-roupa. Por sorte não há motivos para se desesperar: no próximo 2 de fevereiro, sob o signo de Aquário, Shakira cumprirá – apenas – seus primeiros 23 anos.”.

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Hoje, 20 anos depois desse texto revelador de Garcia Marquez, Shakira completa seus 42 anos, mas com a mesma simplicidade, ousadia, perseverança e tenacidade daquela menina que encantou um Nobel de Literatura. Que continue nos encantando pelos próximos 20 anos!

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